Autarcas ainda não sabem o que esperar do “maior investimento de sempre” em habitação prometido por Montenegro


O Estado vai dar o seu aval aos financiamentos necessários para colocar no mercado 133 mil novas casas, das quais 59 mil estarão prontas até junho de 2026. Já nesta quinta-feira será assinado um acordo para que o Banco Europeu de Financiamento coloque 1,3 mil milhões à disposição desta empreitada.
Para já, é tudo o que se sabe sobre o que o primeiro-ministro chamou, na Universidade de Verão do PSD, “o maior investimento de sempre”. Contudo, apesar de a missão de tornar estas casas em realidade ser das câmaras, a lista de perguntas dos autarcas é ainda extensa, conforme verificou o ECO/Local Online.
Uma das questões a exigir resposta – a qual não foi dada pelo Governo até à hora de publicação deste artigo, apesar do contacto com o Ministério das Infraestruturas e Habitação – é se o valor dos financiamentos contará para a capacidade de endividamento das câmaras.
A pergunta é feita de forma clara por Isaltino Morais, presidente da Câmara de Oeiras. “O Governo ainda não explicou como vai funcionar [o financiamento prometido por Montenegro]. O PRR tem uma parte de 75% a 80% a fundo perdido. Precisamos que o Governo especifique em que condições esse crédito vai ser colocado à disposição. Desde os tempos de Cavaco Silva que a habitação deixou de contar para a capacidade de endividamento dos municípios”, nota o autarca, que pergunta ainda: “A garantia do Banco de Fomento vai ter componente a fundo perdido, ou não? Se houver componente a fundo perdido, é positivo. Se se tratar de meros empréstimos, as câmaras não podem esgotar o seu orçamento e deixar de fazer escolas, por exemplo”.
A garantia do Banco de Fomento vai ter componente a fundo perdido, ou não? Se houver componente a fundo perdido, é positivo. Se se tratar de meros empréstimos, as câmaras não podem esgotar o seu orçamento e deixar de fazer escolas, por exemplo.
Também o autarca de Vila Franca de Xira acentua a necessidade de esclarecer este ponto. “A grande preocupação dos municípios é que o Governo consiga garantir financiamento nos mesmos moldes ou melhorados relativamente às regras do PRR”, explica Fernando Ferreira. O autarca do PS afasta desde logo que se exija às autarquias que sejam elas a pagar com fundos próprios a construção, sejam fogos a custos acessíveis, seja habitação social (a que, atualmente, é feito ao abrigo do programa 1.º Direito, criado em 2018, com financiamento a fundo perdido em 100%).
Na margem sul do Tejo, Frederico Rosa, autarca socialista do Barreiro, também aguarda pelo lançamento das prometidas medidas, notando que na Área Metropolitana de Lisboa existe uma “carência muito grave” de habitação, tanto para famílias desprotegidas, quanto para as de classe média. “Esperamos que venha a ser concretizado para reforçar ainda mais a oferta de habitação no Barreiro”, diz, sobre o novo modelo de financiamento assegurado pelo Estado central. Um apoio que considera “fulcral” para providenciar habitação a todos.
Rogério Bacalhau, autarca social-democrata a cumprir as últimas semanas do terceiro mandato em Faro, mostra-se mais entusiasmado, embora assuma a surpresa com o anúncio do primeiro-ministro. “É certamente uma boa notícia. Inaugurei há 15 dias um prédio com 49 fogos do PRR, vou inaugurar outro no dia 7, dia da cidade, 22 fogos também em PRR, mas não há mais financiamento para habitação. Precisamos de construir muito mais, em dois sentidos, habitação social e custos controlados, para que as famílias de classe média possam adquirir casa”, insta o presidente numa das Câmaras que sentem a pressão dos preços da habitação em Portugal.

Num concelho ainda mais longe da fasquia dos 100 mil habitantes que definem os 24 grandes concelhos do país (onde se incluem Barreiro, Oeiras e Vila Franca de Xira), mas que foi apontado há um ano pelo primeiro-ministro como município referência em construção de habitação, Alcanena, Rui Anastácio mostra-se menos preocupado.
O recandidato do PSD na autarquia ribatejana do Médio Tejo considera que o surgimento de soluções para o período posterior ao fim do Plano de Recuperação e Resiliência (PRR, com prazo final de execução em junho próximo) permite aliviar a pressão sobre as autarquias. “Permite mais folga, o mercado de construção está sobrecarregado com obras. A pressão do PRR pressiona excessivamente o mercado e leva ao disparar dos preços, o que faz com que haja muito concursos desertos”, assinala.
Reflexo disso, num dos pacotes de habitação lançados, Alcanena apenas conseguiu entregar duas de 11 obras lançadas. Ao todo, já ficaram desertos 14 concursos e a explicação é simples: “Não tivemos empreiteiros”. O autarca, que entregou até ao momento 49 casas de habitação social (a que se juntam mais 95 fogos em construção, num total de 10 milhões de euros), já olha para os 1,3 mil milhões de euros prometidos por Montenegro como uma forma de colocar nove concursos de construção ou reabilitação em andamento.
Fernando Ferreira considera que “não se pode esperar que o problema da habitação acessível fique resolvido apenas com intervenção dos municípios. Não dá. Os preços são muito elevados e as câmaras têm outras áreas onde investir”. O socialista considera “fundamental que o Governo consiga dotar as autarquias dos valores necessários à construção”, indicando duas medidas consideradas “fundamentais” para se construir a larga escala. Em primeiro lugar, alterar o código de contratos públicos, “para acelerar processos de adjudicações”. Em segundo, “criar condições atrativas para que também os privados entrem neste desígnio de construção de casas que as pessoas possam pagar”.
O autarca de Vila Franca de Xira destaca que “muitos fundos estão disponíveis para investir nesta área, assim a legislação seja simplificada no que diz respeito aos privados poderem construir e garantir valores suportáveis pelas famílias da classe média”.

A quantas autarquias correspondem estes 133 mil fogos de que Montenegro falou na Universidade de Verão do PSD e quais são elas é uma das questões em aberto. Dados disponibilizados pelo Governo de António Costa na apresentação do programa Mais Habitação, em fevereiro de 2023, indicavam haver, à data, 230 estratégias locais de habitação. Por outro lado, há 12 meses, o Executivo apontava que “no cômputo das ELH [Estratégias Locais de Habitação], os municípios identificaram mais de 120.000 famílias em situação habitacional indigna”. Agora, são 133 mil, afirmou o primeiro-ministro.
“Para que os municípios consigam desenvolver na totalidade os projetos, [o financiamento a fundo perdido] terá de estar perto dos 100%. Era o que o PRR previa”, diz o autarca socialista de Vila Franca de Xira.
Apesar da garantia de que os fogos viabilizados pelo PRR beneficiam de financiamento a fundo perdido em 100%, essa dimensão nunca é atingida, como realçam os autarcas de Oeiras e Vila Franca de Xira. O projeto e, depois, garagens, equipamentos (infantários, por exemplo) e espaços comerciais (o café ou o minimercado necessários num bairro) exigem financiamento da própria autarquia, mesmo quando se afirma que o PRR financia a 100%, notam Fernando Ferreira e Isaltino Morais.
O autarca de Oeiras diz saber que “o Governo estava a negociar há meses, através da secretária de Estado da habitação com o Banco Europeu de Investimento”, mas não tem informação sobre as notas que, num comunicado do PSD sobre a intervenção de Montenegro, foram resumidas em dois parágrafos: “Queremos que o Banco Português de Fomento seja o parceiro para o financiamento de todas as operações que hão de colocar à disposição das pessoas e das famílias mais casas para arrendar e mais casas para comprar, e a preços acessíveis”.
E também a referência a que “na quinta-feira, 4 de setembro, vai ser assinada com o Banco Europeu de Investimento (BEI) uma linha de crédito de mais 1.300 milhões de euros para o domínio da habitação acessível”.
“Sei o que sabe o público em geral, uma vez que as medidas foram anunciadas em contexto partidário do PSD”, diz por seu turno Fernando Ferreira. Deixada a “bicada” a Luís Montenegro, o socialista assegura que “não constituem novidades. São reafirmação do que o Governo tinha apresentado em maio de 2024 e algumas medidas estavam preparadas e anunciadas no último Governo de António Costa. Vejo isto como reafirmação de medidas previstas”, diz o recandidato a Vila Franca de Xira.
“Não sabia nem tinha de saber”, afirma por sua vez o presidente de Oeiras, apesar de que, como salienta, “Oeiras é um dos municípios com maior experiência em habitação”. No seu caso, quer saber onde vão ser construídas ou adquiridas as casas, salientando que um número da dimensão anunciada exige construção nova. “Por vezes são anunciadas determinadas medidas”, mas “não basta dizer que vão ser 133 mil”, atira.
Já sobre o valor do empréstimo a contratualizar com o Banco Europeu de Investimento, 1,3 mil milhões de euros, este é apenas uma pequena parcela do necessário. A título de exemplo, em dezembro de 2023, António Costa contabilizava que os 3,2 mil milhões de euros inscritos no PRR para pagamento de habitação a fundo perdido permitiram construir 32 mil casas. Ou seja, apesar o valor representar 2,5 vezes mais que os 1,3 mil milhões anunciados por Montenegro, a quantidade de casas a construir com essa verba era menos de um quarto das 133 mil que o primeiro-ministro indica estarem inscritas nas estratégias locais de habitação.
Se aqui sobram dúvidas, o Governo é claro na promessa referente à meta de 59 mil casas públicas entregues até junho de 2026 – e que inclui construção nova, reabilitação e compra de casas pelas câmaras para arrendamento a munícipes. Até dezembro, 20 mil terão famílias dentro. Até essa data serão entregues 26 mil chaves – para lá chegar, o Governo reforçou, em 2024, a dotação inicialmente prevista no âmbito do PRR, em 790,5 milhões de euros adicionais.
Até 2030, prometia o Governo em julho, haverá 59 mil casas, “num investimento histórico de 4,2 mil milhões de euros, com financiamento do PRR e do Orçamento do Estado”. Antes, em setembro do ano passado, numa resolução do Conselho de Ministros, o Executivo assinalara que os municípios já tinham apresentado candidaturas para “58.993 habitações, verificando-se terem ficado, assim, fora do âmbito do PRR, cerca de 32 990 habitações, as quais constituem uma necessidade efetiva e premente, cuja concretização cumpre assegurar”. Foi aí que a fasquia das promessas de mais casas públicas passou de 26 mil para 59 mil.
No que concerne à comparticipação a que os municípios têm direito por providenciar habitação pública, a Resolução do Conselho de Ministros n.º 129/2024 definia limites para a comparticipação de casas no pós-PRR: 85% para fogos entregues aos residentes até 31 de dezembro de 2026; 75% se a entrega ocorrer no primeiro trimestre de 2027; 65% caso as chaves sejam entregues no segundo semestre desse ano; e 60% para o restante período até 31 de dezembro de 2030.
Ou seja, e pelas contas da Câmara de Vila Franca, na habitação em que o Estado assegura 60% e cabem 40% aos municípios, a Câmara poderá demorar até 130 anos a ser ressarcida pelos seus inquilinos do investimento efetuado. Na simulação apresentada ao ECO/Local Online, para 40% de 180 mil euros de investimento (valor que custou cada apartamento novo construído pela Câmara de Oeiras no primeiro prédio concluído ao abrigo do PRR, conforme nota Isaltino Morais), e com rendas sociais de 45,86 euros mensais (média mensal em 2024), só depois do ano 2150 a autarquia seria ressarcida.
Esta incapacidade de responder por 40% dos investimentos em habitação “tem vindo a vir a ser transmitida em reuniões técnicas – Conselho Metropolitano e Grupo de Trabalho da Habitação”, explica a Câmara, avançando que a Área Metropolitana de Lisboa aguarda por um estudo da Faculdade de Arquitetura da Universidade de Lisboa que, afiança, “irá comprovar exatamente esta afirmação”.
“A habitação é responsabilidade do Estado [central]”, sinaliza Isaltino Morais, que aceita a delegação de competências, desde que acompanhada do respetivo envelope financeiro. “A disponibilidade de crédito dos municípios não se pode esgotar na construção de habitação”, salienta.
Oeiras vai lançar milhares de casas em terrenos rústicos e Barreiro aposta na habitação acessívelEm Oeiras, onde a Câmara está a construir 750 casas, a que se juntam outras tantas lançadas pelo IHRU em Linda-a-Velha, Isaltino Morais anuncia ao ECO/Local Online um lote adicional entre 2.500 e 3.000, a construir em terrenos ainda rústicos, beneficiando da Lei dos Solos aprovada este ano.
O concelho ficará perto das 4.500 a 5.000 casas de que necessita para responder a todos os pedidos de habitação e ainda preservar uma margem na ordem das 500 casas para os trabalhadores nas empresas localizadas em Oeiras. Entre estes, aqueles que estão nos parques tecnológicos e também nas escolas – esta semana foram entregues 25 chaves de alojamento para professores deslocados, com rendas mensais de 150 euros. Deste modo, promete, Oeiras terá 10% de parque público.
Já no Barreiro, a novidade para este ano é, como revela Frederico Rosa ao ECO/Local Online, a abertura de concursos para entrega de casas em arrendamento acessível, que se juntarão à única solução existente, de arrendamento a custos controlados (renda social). “Temos a certeza de que vai ter muita procura. Já se aprovou o regulamento para arrendamento acessível, que nunca houve. Estamos em crer que estamos em condições de abrir este ano”, afirma.
A sua meta para habitação municipal é metade da definida para Oeiras, 5%, partindo o Barreiro de uma realidade atual em torno de 1,5%, afirma o autarca socialista, que espera ver arrancar ainda este ano a construção de 470 casas feitas por privados para arrendar à Câmara a preços de arrendamento acessível.

Uma das imposições para se chegar às 133 mil casas anunciadas pelo Governo é a construção em solo atualmente rústico, assegura Isaltino Morais, cumprindo-se assim o objetivo da designada lei dos solos aprovada este ano no Parlamento, e que é preponderante em Oeiras, Cascais e Sintra, exemplifica.
Do seu lado, anuncia ao ECO/Local Online, irá levar no final do ano à reunião de Câmara e depois à Assembleia Municipal – instâncias designadas pela Lei –, a proposta de construção de novos edifícios em terrenos ainda rústicos. “Tenho os terrenos identificados. São 2,500 a 3.000 casas”, refere.
Fernando Ferreira pormenoriza que as estratégias locais de habitação têm duas áreas distintas, uma para habitação social destinada às famílias sem quaisquer condições de acesso a uma casa digna, e outra para habitação a custos controlados ou renda acessível. “Nessa parte é que é possível abrir portas a uma intervenção musculada de fundos que têm tempo para aguardar pelo retorno do seu investimento, tendo em conta que habitação é daquelas áreas em que pessoas tendem a cumprir”, nota.
Num artigo no seu blog, em fevereiro de 2020, quando ainda não existia o PRR (programa criado para ajudar a economia europeia a recuperar da recessão criada pela pandemia) Helena Roseta, arquiteta e um dos nomes mais reputados em políticas de habitação em Portugal, resumiu assim a dinâmica da habitação pública nos últimos 40 anos: “O Estado deixou de promover directamente habitação pública desde 1982, com a extinção do Fundo de Fomento da Habitação, e foi-se desfazendo da habitação pública que havia promovido. Foi assim que chegámos aqui […] Destes 2%, que representam perto de 121 mil fogos, só cerca de 11 mil estão na alçada do Estado, geridos pelo Instituto da Habitação e Reabilitação Urbana (IHRU). Os restantes 110 mil pertencem sobretudo aos municípios, em quem o Estado vem delegando a sua responsabilidade de promotor de habitação pública”.
Se o Governo cumprir a promessa, as 133 mil casas a construir ao abrigo das estratégias locais de habitação representam quase 10% mais do que todo o parque público existente em 2020.
ECO-Economia Online